Kingdom Come: Deliverance, o primeiro jogo da série, foi lançado originalmente em 2018, depois de uma bem sucedida campanha de crowdfunding no Kickstarter. Seu principal apelo era oferecer uma experiência de mundo aberto, ambientada em um cenário medieval, mas sem magias, dragões ou qualquer coisa do tipo. O desafio proposto ao jogador não era vencer feras míticas, mas apenas seguir a narrativa do jogo carregando a dura, extensa e pesada armadura da realidade. Mas será que o seu sucessor, Kingdom Come: Deliverance 2, consegue superar o que ele atingiu?
Assim como no primeiro jogo, Kingdom Come: Deliverance 2 mantém a mesma premissa, mas consegue ser mais hábil em desafiar o jogador. O realismo permanece, mas a luta do jogador contra o próprio jogo tornou-se mais equilibrada do que nunca.
Acredito que antes de um jogo ser capaz de oferecer um bom desafio para o público, o desenvolvedor precisa entender o que faz um jogo ser bom o suficiente para o público que pretende agradar. Gráficos? Narrativa? Sinceramente eu não sei a resposta para essa pergunta, mas sei dizer porque Kingdom Come: Deliverance 2 é para mim, um dos melhores jogos que já experimentei na minha vida.
Em tempos de vídeos curtos, *brain rots* e uma enxurrada de conteúdos que tem como único objetivo conduzir um derrame de dopamina no seu cérebro, Kingdom Come: Deliverance 2 se destacou por um motivo simples, porém crucial: prendeu minha atenção. Sequer lembro da última vez que isso aconteceu, mas posso dizer que não senti vontade de largar o controle para fazer qualquer outra coisa por horas a fio enquanto me aventurava pelos bucólicos cenários da Boêmia do século XV.
Essa conquista não é a toa. O diretor de Kingdom Come é ninguém menos que Daniel Vávra, a mente por trás dos primeiros dois jogos da série Mafia. Vávra sabe como contar uma história enredada e cheia de plot twists. Além disso, se você jogou os dois primeiros jogos da série Mafia, sabe que tratar a narrativa como círculo perfeito, onde o fim sempre significa um novo começo, é praticamente a força motriz por trás da franquia.
Mesmo assim, a verdade é que ninguém pediu por Kingdom Come: Deliverance 2. Muita gente sequer experimentou o primeiro jogo que, mesmo com uma proposta muito boa, passou longe do radar de grande parte do público. Na verdade, será que o primeiro jogo não foi suficiente para contar a história de Henry de Skalitz? Será que o arco de maturidade de Henry, motivado pelo desejo de vingança de provar o seu valor já não foi superado? Por que, afinal trazer o mesmo personagem após ele já ter, aparentemente, completado seu arco de desenvolvimento?
Todas as perguntas acima são válidas, até porque estamos acostumados a ver grandes franquias afundando após um retorno não programado. Mas a Warhorse sabe o que faz, e não só entrega um jogo melhor do que seu antecessor, como conseguiu colocar Henry em uma nova aventura tão profunda quanto a primeira, sem MacGuffins exagerados e que, para minha surpresa, soa como o verdadeiro arco de crescimento de amadurecimento do protagonista.
A nova aventura de Henry e Sir Hans é cativante e interessante. A narrativa do jogo tem um sabor diferente, difícil de identificar. Quase como aquele prato preferido que a sua avó fazia, mas que você jamais conseguiu reproduzir por não saber qual tempero ela utilizava. No caso de Kingdom Come: Deliverance 2, esse tempero é ainda mais difícil de identificar, no entanto, é algo marcante o suficiente para prender sua atenção por horas a fio. Algo que, em uma época em que lutamos para manter nosso foco em apenas uma coisa só, é, de fato, impressionante.
Kingdom Come Deliverance 2 é, acima de tudo, um convite irrecusável à descoberta. Uma aventura concisa, enredada e quase impossível de se abandonar, principalmente porque o jogo te faz sentir que tudo que se desenrola durante sua narrativa, é, sem sombra de dúvidas, sua responsabilidade.
Antes de entrarmos no enredo em si, preciso lembrar que a proposta de Kingdom Come: Deliverance 2 é apresentar um recorte de um dos momentos mais importantes da Boêmia – hoje, República Tcheca, do século XV, onde dois imperadores passaram a disputar território após a morte de seu pai, o imperador Carlos IV.
Assim como no primeiro jogo, o cenário se destaca e se mostra impressionante pelo seu realismo. Geralmente, ao jogarmos títulos medievais, encontramos localidades fantásticas e impressionantes. Porém em Kingdom Come: Deliverance 2, as coisas são bem diferentes, já que o realismo e a simplicidade do cenário são o que o tornam tão impressionante.
Em termos visuais, Kingdom Come: Deliveranve 2 é um absoluto espetáculo criativo. Os mapas e cenários parecem, assim como no primeiro jogo, terem sido desenhados a mão, com atenção especial a cada mínimo detalhe. Contudo, como já mencionei, o mais impressionante é que os mapas do jogo apresentam um realismo corajoso, que salpica todo o cenário de imperfeiçoes, assim como é na vida real. Ao invés de lagos e montanhas épicas e absolutamente perfeitas, a Boêmia do século XV é mostrada como algo simples e trivial. Um local onde lagos não possuem água cristalina, grandes rios caudalosos são substituídos por pequenos riachos e açudes; e as cidades são cheias de esterco, bêbados e ratos. Nada disso é sinônimo de beleza, mas encontrar estes pequenos detalhes em um cenário de que se propõe a ser realista, com certeza é.
Além disso, os gráficos de Kingdom Come: Deliverance 2 são incríveis. Tanto a construção de personagens e suas expressões faciais, quanto detalhes de iluminação de comportamento de fluídos são extremamente convincentes. Além disso, a composição do jogo sempre retorna para a premissa acima: são as imperfeições do mundo real que tornam o mundo bonito, e são essas imperfeições que são mostradas, sem medo, no mundo, personagens e cenários do mundo de Kingdom Come: Deliverance 2.
Por mais que sair por ai caminhando pela Boêmia do século XV seja uma excelente e relaxante atividade, Kingdom Come: Deliverance 2 oferece muito mais do que isso. O combate, por exemplo, que assim como todo o resto se propõe a ser realista, volta com a mesma pegada do primeiro jogo, ao mesmo tempo que traz algumas melhorias de qualidade de vida.
Essas melhorias são justificadas pelo ganho de habilidade e experiência do próprio Henry e tornam uma das atividades mais fundamentas do jogo em algo mais divertido e desafiador. O jogador ainda precisa prestar atenção no posicionamento do oponente antes de desferir o golpe, ou ainda, no avanço do oponente antes de decidir se irá atacar, defender ou esquivar. Contudo, o aumento da responsividade dos controles torna a ação e a reação durante o combate em algo mais dinâmico e preciso, dando mais segurança de que, após alguns minutos de treino e com alguma habilidade, podemos enfrentar o inimigo mais poderoso do jogo. A vitória dependerá não só da sua habilidade em apertar botões, mas da sua atenção aos detalhes mencionados acima.
Quem for audacioso o suficiente, pode até passar toda campanha com o mínimo de armadura. Contudo, para todos os outros, revestir seu corpo de algodão, couro e metal provavelmente será a escolha mais adequada. Kingdom Come: Deliverance 2 permite que você use suas armaduras da forma como preferir, mas deixa claro que se o jogador preferir usar armaduras de placas sem qualquer cuidado – como usar um gibão de algodão por baixo da armadura, por exemplo, as desvantagens podem ser maiores do que qualquer proteção causada pelo metal.
Imagino que alguns leitores possam achar o excesso de detalhamentos um tanto massivo e enfadonho. Afinal, é comum pensar em quanto tempo podemos perder nos menus apenas “configurando” a ordem de vestimenta das armaduras. Eu lhe entendo, amigo leitor. Porém, ainda assim, lhe asseguro que tal tarefa não é nada tão severo quanto parece e os menus do jogo, embora um tanto confusos e ameaçadores no começo, logo se apresentam como sendo bastante lógicos e com grande facilidade de navegação.
Como um bom jogo baseado na era medieval, tudo pode ser resolvido na base da pancada e da intimidação. Mas onde está a graça nisso? Em algumas ocasiões, certa situações podem ser resolvidas na base da conversa ou da crocodilagem, e acredite, Kingdom Come: Deliverance 2 é preciso em lhe recompensar de maneiras diferentes de acordo com a forma como você se comporta ou lida com os seus desafios.
Em alguns casos, entrar em uma troca de socos pode ser extremamente divertido e muito mais fácil do que resolver percorrer grandes distâncias atrás de um item específico. Porém, convencer alguém de que você é um oponente impossível de ser vencido também tem seu valor. Além disso, não encontro palavras concisas para definir como me diverti evitando brigas e resolvendo alguns problemas triviais na base da furtividade e do subterfúgio.
Ainda assim, tentarei explicar essa importante mecânica de forma objetiva. Resumirei a furtividade apenas como “realista”. Agachar-se e abater seus inimigos um a um não é tão simples como em Skyrim, tampouco real o suficiente para ser comparada à vida real. Mas faço questão de mencionar o comportamento de um inimigo após ver seu colega de patrulha ter sido derrubado por este que vos escreve. Ao invés de se encher de coragem e vasculhar cada canto do cenário atrás de um possível assassino escondido nas sombras, o guarda simplesmente virou as costas e correu – assim como eu mesmo provavelmente faria em seu lugar. Isso não só facilitou a minha vida, como me fez sentir extremamente recompensado por ter tido a coragem de abater seu companheiro muito mais vulnerável quando o jogo me permitiu.
Enquanto o primeiro jogo apresentava o desejo de Henry em mostrar seu valor e ganhar permissão para recuperar a espada de seu pai, o segundo jogo coloca Henry e Hans em uma situação nada convencional e exige criatividade para que tudo se resolva.
Acontece que Hans e Henry, agora mais maduro e capaz, são designados a cumprir uma missão importante em uma terra distante. Em determinado momento, tudo dá errado, e os dois companheiros se pegam em uma cidade desconhecida, sem títulos e sem patrocínio, precisando angariar fundos para recuperar alguma capacidade de decidir se cumprirão a missão ou se voltarão para casa com o rabo entre as pernas.
Outro detalhe importante a ser mencionado é que, apesar de Kingdom Come: Deliverance 2 se passar logo após o primeiro jogo, não senti que ter jogado o primeiro jogo seja extremamente necessário para iniciar a nova jornada sem sentir-se perdido. Kingdom Come: Deliverance 2 faz um bom trabalho apresentando os principais acontecimentos do primeiro jogo nas cenas iniciais, sem abusar de cutscenes longas e cheias de flashbacks intermináveis. Kingdom Come: Deliverance 2 introduz os acontecimentos do primeiro jogo de forma leve e compreensível, dando a impressão de que é possível entender perfeitamente quem Henry de Skalitz foi, em quem se tornou, e principalmente porque diabos ele quer tanto arriscar a própria pele pra recuperar uma maldita espada.
Também gostaria de mencionar como Kingdom Come: Deliverance 2 é, em praticamente todos os aspectos, uma sequência de seu antecessor. Ok, talvez isso pareça um tanto óbvio, mas não é incomum que vejamos jogos, filmes, livros ou séries de TV que, em suas sequências, acabam apresentando algo completamente destoante e diferente do que esperávamos. Aqui lhe asseguro: não é o que acontece com Kingdom Come: Deliverance 2.
Aqui, é evidente que não apenas Henry parece estar mais maduro e confiante, mas o jogo como um todo é mais estável, maduro e melhor. Kingdom Come: Deliverance era um bom jogo, mas falhava em alguns momentos e cedia com o peso de sua própria audácia. Jogar em dificuldades mais altas tornava o combate tão desafiador, que encontrar mais de um inimigo era morte certa, mesmo com o melhor equipamento do jogo. Afanar itens, destrancar portas, convencer NPCs… tudo era possível, mas ainda assim o jogo passava uma sensação de ser difícil não só pelo desafio do próprio jogo, mas por um desbalanceamento esquisito em suas mecânicas. Com o tempo, alguns patchs foram lançados e a maioria destes problemas foram corrigidos. E toda a experiência obtida nesse processo de atualização e correção parece ter feito com que Kingdom Come: Deliverance 2 fosse lançado redondinho, balanceado e mais realista do que nunca.
Jogadores de console também costumam ter outro tipo de preocupação hoje em dia: a otimização. Afinal, não é incomum que jogos rodem muito abaixo do esperado nos consoles. Este review foi produzido com uma cópia do jogo para PS5, e confesso que me impressionei com o desempenho de Kingdom Come: Deliverance 2 na plataforma.
Mesmo no modo desempenho os gráficos são de tirar o fôlego e a resolução não apresenta serrilhados ou artefatos que incomodem ou atrapalhem a jogatina. É importante frisar que Kingdom Come: Deliverance 2 roda a 1440p@30fps (modo gráfico) e 1080p@60fps (modo desempenho) no PS5 e no Series X, mas que o modo desempenho não deixa a desejar no quesito gráfico e provavelmente vá te surpreender do início ao fim da campanha.
Os únicos problemas gráficos que notei foram alguns pequenos bugs nas cutscenes, durante a transicão do personagens entre os diálogos. Não são glitches pesados ou que comprometam a gameplay de alguma forma. Ainda assim, é bom você saber que eles existem.
Kingdom Come: Deliverance 2 ainda conta com um competente sistema de progressão, que não só lhe ajuda a progredir mas lhe faz querer aumentar de nível, além de um extremamente realista, porém divertido, sistema de alquimia. Acredite, depois de tomar tanta pancada e descobrir que Henry não é capaz de se curar miraculosamente sozinho, você vai precisar sair catando ervas por ai, além de bandagens e comida.
Acredito que Kingdom Come: Deliverance 2 seja um dos melhores jogos dos últimos tempos, e com certeza um dos melhores jogos que já joguei na vida. Uma experiência marcante que demonstra um crescimento e amadurecimento não só do protagonista, como também da equipe de desenvolvimento e da franquia como um todo.
É um jogo realista, que vai dificultar até no momento de lutar usando capacetes, mas que ainda assim se apresenta de maneira simples, deixando as regras do jogo claras desde o primeiro momento. É um desafio complexo, com certeza, mas mais simples de ser compreendido do que parece.
Kingdom Come: Deliverance 2 pode estar longe de cumprir os requisitos para ser um círculo perfeito, mas ainda assim, é uma das narrativas mais bem escritas que já experenciei e uma das melhores sequências que já vi. O fato de conseguir começar novamente do mesmo ponto onde terminou, torna a história de Henry e Hans impressionante, e me faz pensar se um dia teremos um Kingdom Come: Deliverance 2. Daniel Vávra e sua equipe são mestres em criar boas histórias, e muito bons em criar narrativas capazes de prender nossa atenção não só pelo apelo visual, mas pela curiosidade causada por qualquer boa estória.
Audentes Fortuna iuvat! E quem sabe um dia nos encontremos novamente na próxima aventura.
Resumo para os preguiçosos
Kingdom Come: Deliverance 2 é uma sequência impressionante que aprimora tudo o que o primeiro jogo fez de bom, oferecendo uma experiência medieval hiper-realista sem elementos fantasiosos. O jogo mantém sua narrativa envolvente e desafiadora, colocando o jogador em um mundo onde as decisões têm peso e a imersão é absoluta. A história segue Henry de Skalitz e Sir Hans em uma nova jornada cheia de reviravoltas, mostrando um desenvolvimento ainda mais maduro dos personagens e da própria jogabilidade. Os gráficos são impressionantes, o combate é mais equilibrado e as mecânicas de RPG foram refinadas para proporcionar uma experiência mais fluida e recompensadora.
Mesmo sem um grande apelo comercial inicial, a Warhorse Studios entrega um jogo envolvente que respeita sua proposta original e evolui sua jogabilidade sem perder a essência. A otimização para consoles é sólida, com bom desempenho no PS5 e Xbox Series X, embora ainda existam pequenos bugs visuais. No geral, é um dos melhores jogos medievais já feitos, trazendo uma jornada épica que prende a atenção do início ao fim.
Prós
- Narrativa profunda e bem escrita com excelente desenvolvimento de personagens.
- Mundo aberto hiper-realista, sem fantasia, repleto de detalhes históricos e ambientação fiel à Boêmia do século XV.
- Gráficos impressionantes, com cenários e personagens detalhados, além de uma iluminação realista.
- Combate aprimorado, mais equilibrado e responsivo em relação ao primeiro jogo.
Sistema de progressão recompensador, incluindo habilidades e alquimia bem desenvolvidas.
Liberdade de abordagem, permitindo resolver situações com diplomacia, furtividade ou combate. - Otimização competente nos consoles, com desempenho sólido no PS5 e Xbox Series X.
Contras
- Curva de aprendizado íngreme, especialmente para iniciantes na franquia.
- Alguns bugs visuais nas cutscenes e transições de diálogos.
- Menus e interface confusos no início, podendo ser intimidador para alguns jogadores.
- Sistema de armadura realista pode parecer complexo para quem prefere simplicidade na customização.
- Ritmo mais lento, exigindo paciência para imersão total na experiência.